No
Brasil os sapatos de tecidos eram os mais comuns entre os poucos que
podiam usá-los. Os de pelica, que eram mais resistentes, só apareceram em
1.840 graças a um artesão francês. A descrição que Debret fez (leia no
último parágrafo), no início do
século XIX, sobre o uso de calçados no Rio de Janeiro, mostrava a situação
existente.
O
artesanato do couro começou a se especializar apenas com a vinda dos
alemães a partir de 1.824 (São Leopoldo-RS foi a primeira colônia). Além
dos artigos de montaria (selas etc) os artesãos do couro fabricavam
objetos de uso pessoal principalmente botas, botins e sapatos. Ao
contrário dos brasileiros que, principalmente nas camadas mais pobres da
população, estavam acostumados a andar descalço, os alemães não concebiam
a realização de trabalhos agrícolas sem sapatos. Na confecção dos calçados
eram aproveitadas as sobras do couro utilizado para fazer os pertences de
montaria. Nos anos seguintes novas levas de imigrantes da Europa tinham
muitos profissionais ligados ao couro (seleiros, curtidores, sapateiros)
atraídos pela possibilidade de ganhos dentro de suas profissões.
Os
três conflitos seguidos - a Revolução Farroupilha (1.835-1.845), a guerra
Platina (1.850-1.852) e a guerra do Paraguai (1.864-1.870) criaram um
expressivo aumento da demanda e nos períodos em que a procura diminuía os
mercados próximos eram suficientes para garantir a sobrevivência do
artesanato do couro.
Antes
do final da década de 1.860, o ramo produção de calçados era,
caracteristicamente, desenvolvido numa indústria local em pequena escala,
operada principalmente por artesãos. Existem indicativos de que a
concentração da produção em fábricas teria sido iniciada na primeira
metade da década de 1.870. Tal movimento, certamente, foi impulsionado pela
introdução da máquina de costura. Entretanto, ainda que no final do século
XIX a indústria de calçados tivesse evidenciado significativos avanços em
seu processo produtivo, ela ainda continuou ostentando fortes
características artesanais, pois estava amplamente baseada em processos
manuais.
O
período de 1.860 a 1.920 foi de grande avanço tecnológico que transformou o
sistema artesanal de em atividade verdadeiramente fabril. Entre 1.920 e
1.960 o período é de relativa estagnação. Após 1.960 entramos em um novo
período de dinamismo através da produção de calçados de couro para o
mercado externo, do calçado de plástico que firma-se no final da década
de 70 no mercado interno e atinge também o mercado externo nos anos 80.
O
primeiro centro produtor de calçados esteve concentrado na cidade do Rio
de Janeiro por causa da disponibilidade de energia elétrica, meios de
transporte para escoamento da produção e por ser o principal centro
comercial e político do país. O início de desconcentração é feito
principalmente em direção aos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo que
já possuíam uma forte tradição como produtores de calçados (a diferença
estava no volume produzido).
Jean
Baptiste Debret. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo,
Círculo do Livro, s.d., p. 249-51
"O europeu que chegasse ao Rio de Janeiro em 1.816 mal poderia acreditar,
diante do número considerável de sapatarias, todas cheias de operários,
que esse gênero de indústria se pudesse manter numa cidade em que cinco
sextos da população andam descalços. Compreendia-o entretanto logo, quando
lhe observavam que as senhoras brasileiras, usando exclusivamente sapatos
de seda para andar com qualquer tempo em cima de calçadas de pedras, que
esgarçam em poucos instantes o tecido delicado do calçado, não podiam sair
mais de dois dias seguidos sem renová-los, principalmente para fazer
visitas. (...) Esse luxo, aliás, não é exclusivo dos senhores; ele obriga
a brasileira rica a fazer calçarem-se como ela própria, com sapatos de
seda, as seis ou sete negras que a acompanham na igreja ou no passeio. A
mesma despesa tem a dona-de-casa menos abastada, com suas três ou quatro
filhas e suas duas negras. A mulata sustentada por um branco faz questão
também de se calçar com sapatos novos cada vez que sai, o mesmo ocorre com
sua negra e seus filhos. A mulher do pequeno comerciante priva-se de quase
todo o necessário para sair com sapato novo, e a jovem negra livre arruina
seu amante para satisfazer essa despesa por demais renovada. (...) É,
portanto, exclusivamente nos dias de festa que se vêem no Rio de Janeiro
mulheres de todas as classes calçadas de novo, pois, chegando a casa, os
escravos guardavam os sapatos e a criada de quarto somente conserva um par
já velho, que usa como chinelas. O mesmo acontece na intimidade da maioria
das famílias, onde as mulheres, quase sempre sem meias e sentadas em geral
nas esteiras ou na sua marquesa, conservam habitualmente a seu lado um par
de sapatos velhos, que servem de chinelas, para não andarem descalças
dentro de casa. (...) Em resumo, esse desperdício de calçados, feito por
mulheres que não os usam em casa, basta para sustentar os sapateiros...". |